11/23/2005

Vi hoje o Gil na estação dos Barcos



Hoje de manhã fui deixar o carro à estação velha.
Depois, para cortar caminho, atravessei as linhas de comboio evitando sujar os meus sapatos engraxados nos velhos carris cruzados. Queria chegar ao barco depressa porque estava atrasado.
O vento empurrava-me o focinho para o chão. Entre as carruagens paradas reconheci um vulto. Voltei a cabeça e o vulto já não estava.
O Gil meteu-se para dentro de um vagão de mercadorias.
Viveu por ali ainda uns meses. Durante o dia cravava trocos na estação à malta que passava para Lisboa. Assim que juntava o dinheiro suficiente para a viagem e para a dose seguia directamente para o Casal Ventoso. Isto no tempo em que o Casal Ventoso era simplesmente o Casal. Hipermercado de heroína abastecedor de toda a grande Lisboa. Antes das associações de moradores da Quinta da Cabrinha e dos processos de reinserção social e requalificação urbana. Antes da Metadona.
Quando eu encontrava o Gil dava-lhe cigarros ou pagava-lhe uma sandes. Às vezes fingia que não o via. Outras vezes procurava-o para lhe dar uma maçã ou uma pêra. Depois o Gil desapareceu da estação dos barcos e deixei de o ver. Disseram-me que estava a viver no Casal.
Conheci o Gil na escola secundária. Era bem falante e tinha os olhos claros. Veio de outra escola e depressa se integrou entre o pessoal. Até nem era mau aluno. Fumava charros e bebia vinho, gostava dos sex pistols e tinha jeito para o desenho. Tinha sentido de humor e eu dava-me bem com ele. Chegamos a viajar juntos para acampamentos e fins de semana.
Quando o Gil ficou agarrado roubou toda a gente à volta. A família meteu-o fora de casa. A cena do costume. O Gil traficou uns bocadinhos mas depressa se dedicou a pedir esmola e a viver na rua. Ainda não tinham inventado a profissão de arrumador. Foi nessa altura que o Gil foi viver para os comboios. Como sempre foi educado e bem falante, os trabalhadores das oficinas da CP toleravam-no e no Inverno deixavam-no dormir nas carruagens.
Eu cá nunca fui de moralismos mas também não tenho feitio para sustentar os vícios dos outros, já bastam os meus -- por isso passei a evitar encontrar o Gil. Via-o pouco nessa altura mas percebi que não havia grande volta a dar....
Uns meses depois do Gil ter desaparecido do subúrbio soube pelo irmão que o Gil tinha morrido no casal ventoso. Tinham-no encontrado morto numa valeta da avenida de Ceuta. Morreu de hipotermia. A sida trouxe-lhe tuberculose. Tinha 25 anos.
A noticia caíu-me no estomago como um bagaço em gejum. Não era nada que não se adivinhasse...
Passou uma dúzia de anos desde que a família o enterrou num caixão barato no cemitério da vila chã. Eu vi e ouvi a terra a bater na madeira.
Contra tudo aquilo que está previsto na fisica e apesar do peso da terra que lhe pusemos em cima, o Gil continua entre os comboios e os passageiros que chegam e partem. Hoje o Gil estava tão mocado com cavalo que nem me reconheceu no meu fato e gravata. Ainda fui atrás dele mas perdi-lhe o rasto entre as carruagens paradas. Desisti da ideia de revê-lo e vim trabalhar. De qualquer forma, quando quiser encontrar o Gil, basta-me ir até à antiga estação dos barcos. O seu espírito vai por lá deambular nos próximos mil anos.

5 Bocas:

At 3:47 da tarde Anonymous Anónimo said...

CM quando é que cá vens novamente?
Não era uma boa o pessoal fazer um juntar do altoseixo? Vamos pensar nisso. Amadureçam a ideia
MM

 
At 4:16 da tarde Blogger Unknown said...

CM: acho que entretanto percebeste: o sostrova viu o gil como viu a preta do cais do sodré...
Vivos, semi-vivos, mortos-vivos estão os Giles todos que a vida abandonou e a droga aperfilhou...
Também me lembro do Gil na estação, e no feira nova a fazer "retoma" de carrinhos.
"Deixa-me arrumar, deixa-me arrumar..." em troca da moeda que lá estava cravada...
O gil morreu, mas a miséria sobreviveu-lhe...

 
At 7:08 da tarde Blogger blimunda said...

eu vou contigo ao martin moniz! e o sostrova de certeza que também quer ir! eu cá por mim acho que estou na fase de voltar a comer comida asiática depois dos meus enjoos de grávida.

quanto aos carochos raros são aqueles que me conseguem sensibilizar. dá-me raiva sim aqueles que não fizeram nada para ter um cancro ou um ataque cardíaco e se lixaram!!! tenho dito!
a bué politicamente incorrecta

 
At 8:56 da tarde Blogger Helder Miguel Menor said...

Duas coisas:
Primeira coisa, preferi por esta fotografia que tirei ao final da tarde porque ilustra melhor o que sinto ao passar na antiga estação dos barcos.
Segunda coisa, esta posta não é sobre a heroína, nem sobre os amigos que morreram, nem sobre as toxicodependências. È só sobre a minha convicção da persistência dos espíritos nos lugares independentemente do factor tempo. Só isso.

 
At 11:15 da manhã Blogger Dina Almeida said...

Fizeste-me lembrar a última vez que vi o Gil...
...
...
:-(

 

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