5/15/2007

Lua Africana


Luanda fervilha com gente. Milhões respiram na cidade e no musseque, onde se acotovelam um sem número de barracas. Todos querem sugar esta cidade-promessa e ser gente, ser gente novamente.

Hoje nasceu a última flor à face da terra. Imaginemos o cenário dantesco. As poucas árvores que resistem sólidas no seu palanque estão castanhas escuras. O negro é a cor dominante. O perigo espreita a cada esquina porque os senhores da guerra ainda não terminaram a sua batalha. Esperam até cair inerte o último corpo e fazer render o último vintém. O mundo assiste à sua própria extinção e, à falta de um local mais acolhedor, populações inteiras de refugiados seguem viagem para a Lua, único local temporariamente seguro e habitável.

Aos sete anos de idade tinha um livro chamado 'Nós e o Universo'. Explicando fenómenos científicos de forma descomprometida e futurista, fez-me sempre acreditar que quando chegasse aos 20 e poucos iria passar umas férias à Lua, destino comum no que na altura parecia o longínquo ano de 2002.

A viagem acabou por acontecer, embora mais tarde e falsificada. Luanda foi o destino mais próximo que encontrei do que imaginei ser um cenário, uma superfície lunar.

Não será por acaso que o próprio nome da cidade seja esse, em sussuros íntimos de quem a conhece bem, Lua. Também não se deverá ao mero acaso o facto de o 'Miradouro da Lua' (um local elevado onde se pode observar a peculiar fundição colorida da rocha imensa na paisagem) se situar a poucos quilómetros da capital angolana. E não fico ainda alheia ao revelador destino que presenteou a primeira noite da minha estadia com um eclipse lunar.

Numa ficcionada organização cósmica, Luanda estará para Angola como a Lua está para a Terra, um seu satélite salvador, último reduto em caso de catástrofe.

Após décadas de conflito, cada vez mais gente migrou para a capital. Fugiram de tudo um pouco e essencialmente partiram para sobreviver.
Imenso país, de paisagens vastas e deslumbrantes, de mato, verde, de intensa fauna e flora (a fauna foi outrora bem mais variada, mas até os animais fugiram naturalmente da guerra), fértil, rico em recursos naturais, daquela terra vermelha brotam diamantes, ouro, petróleo. Mais ainda, dos cem minerais mais raros do planeta, 80 existem lá.

As qualidades não se ficam por aqui. Como quase todos os países africanos tem aquele encanto natural difícil de explicar que residirá, em parte, no facto de se sentir ser um lugar que ainda está 'em bruto', inexplorado, onde há tudo para começar.

Não é difícil especular sobre o sentimento dos primeiros portugueses ao aportarem a terra virgem. E mesmo dos seguintes que sempre encontram outro colorido, outra naturalidade no movimento dos corpos e no brilho - agora mais desconfiado - dos olhares.

Entre o verde da estação das chuvas e o árido do cacimbo, um vasto horizonte pontuado de imbondeiros estende-se a perder de vista. Em quilómetros de praias praticamente intocadas, emolduradas com palmeiras e outros verdes, divertem-se peixes que vimos saltar mesmo ali e correm, mais para trás do que para a frente, milhares de caranguejos da cor da areia.
Aldeias de pescadores estendem-se pela costa nas suas casinhas de palmeira, descansam na praia barcos coloridos que trazem o peixe para secar nas esteiras.

A paisagem bucólica contrasta com o caos da cidade a que os portugueses chegam (alguns regressam, outros nunca partiram) cada vez em maior número, como se a história se repetisse. Mas agora, americanos, libaneses, israelitas, chineses, brasileiros já se instalaram na Lua. Vieram dar novo fôlego à terra, a sua contribuição para o 'desenvolvimento do país'.
Uma peregrinação tão intensa que esgota os poucos e caros hotéis e as escassas casas para alugar.
Diz-se que muitos chineses vivem nos contentores que os levaram. Vê-se que os americanos vivem rodeados de arame farpado à volta das suas vivendas já à saída da cidade.

O povo fugiu há anos das imensas províncias para a capital, onde hoje reside mais de um terço da população angolana.
A Lua, habituada a sentir o ritmo da vida de meio milhão de pessoas, no máximo, palpita e respira agora o odor quente onde se movimentam cerca de cinco milhões de gente.

Esta gente descobre-se vivendo em condições cujo detalhe ficará para outra ocasião. Por todo o lado há carros, jipes, candongueiros azuis e brancos, a abarrotar de gente, a empurrar os outros carros no trânsito, a gritar o destino e as paragens à janela.

Por todo o lado há zungueiras que cantam os seus produtos, com alguidares na cabeça e filhos no regaço, envoltos em panos garridos.
No passeio há cestos cheios de chinelos para todos os gostos.
Na estrada, na esquina, vendedores: fruta, peixe, cabides, óculos, berbequins, malas, prateleiras, tecidos, cortinas para o banho, chocolates, CDs, sandálias douradas de salto alto.
Em toda a berma há gasosa, cerveja, Cuca.
Música. Por toda a rua há movimento, ritmo, kisomba. Em todo o ar se ouve o andar descalço de coxas bamboleantes. Em qualquer esquina, em qualquer sombra se vende e se compra, se ouve barulho.
Qualquer lugar tem riso, tem crianças, muitas, bandos de crianças alegres e curiosas. Ou frias.

Por todo o lado há gente que quer ser pessoa, superar a sua condição de miséria.

O pó das ruas esburacadas e o calor húmido tolhem o entendimento. Por todo o lado há lixo. Cada musseque, amontoado de corpos que se equilibra sem água, sem luz, sem espaço, é rodeado de lixo por todos os lados.
Ravina acima, mulheres levam água para casa em recipientes amarelos, à cabeça, passando pelo entulho.
Ravina abaixo, cada vez que chove há casas que caem, desmoronam-se, há gente que fica sem pouco, sem nada.

Mirando de longe a cidade surge o que parece ser uma bela mulher, que resplandece nas águas calmas da baía. Uma vez lá dentro revela-se uma matrona, desfigurada pelos anos e pelo descuido, embora consiga preservar uma beleza peculiar, difícil de entender.

É assim que se vive na Lua, evitando o perigo, o buraco, o mosquito.

O que aconteceria se a terra assistisse um dia ao seu derradeiro suspiro e a humanidade que resta se visse obrigada a fugir do que destruiu?, questionei.
Aconteceria que gente partia para onde achasse que poderia viver, talvez para a Lua. Aconteceria que tal como em Luanda se encontrava tanta gente, sedenta de ser gente novamente.

Clara Martins, Terça, 3 de Abril às 16:20